A breve reflexão abaixo foi feita a partir da leitura do livro Como se Aprimora um Bom Roteiro, escrito por Linda Seger e publicado pela Bossa Nova.
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Barbra Streisand como Yentl e Anshel |
Se tomarmos como base o quadro acima, organizado em oito partes: o elemento catalisador, imagem inicial, apresentação, ponto de virada 1, conflito, ponto de virada 2 e clímax, podemos ter uma visão da lógica interna, estrutural, que revela a costura feita pela roteirista e diretora a fim de introduzir uma questão feminista no filme Yentl. Neste caso, identificar o elemento catalisador ajuda o espectador a observar uma ação importante no começo do filme que motiva a protagonista, neste caso Yentil, a responder às regras sociais, enquadrando-se nela ou subvertendo a elas. O fato de a protagonista ter sido proibida de ler os livros destinados aos homens, a faz indignar-se e questionar-se sobre as limitações impostas ao seu sexo, possível porque ela tinha sido iniciada em casa por seu pai nos estudos das escrituras. O que nos leva a pensar sobre o papel fundamental de um mediador ou mediadora na formação dos jovens, na mudança de visão desses jovens.
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Anshel/Yentl com Avigdor e outros estudantes |
O elemento catalisador pode ser identificado como a primeira ação visível ao espectador que revela um traço da personalidade da personagem ou ainda a sua visão da ordem das coisas. Em relação ao filme, fica evidente que Yentl não se enquadra às regras sociais vigentes em sua época: as mulheres não poderiam estudar, ler livros que desestabilizassem a ordem social.
Esta ideia é anunciada na imagem inicial, quando os livros aparecem vistos de cima para baixo, mostrando o quão importante eles eram para aquela comunidade, já que chegava com esforço para suprir uma necessidade na formação de homens e mulheres, mas que já vinham separados por gênero: para eles os assuntos que exercitavam a lógica, o raciocínio, o pensamento, enquanto que para elas os romances, os assuntos de amor. A imagem inicial e o elemento catalisador formam sentidos que se fortalecem, convergindo-os devido a manipulação da linguagem cinematográfica, mais especificamente os planos, os ângulos, o movimento de câmera e, além de tudo, o processo de montagem. O espectador é induzido a perceber que a narrativa se desenvolverá a partir do esforço da protagonista em apropriar-se dos livros proibidos e partir em busca do conhecimento. Isso nos leva para a questão central: será que ela conseguirá subverter a ordem social?
As respostas serão dadas durante a apresentação, os pontos de virada, os conflitos e o clímax. Na apresentação, temos conhecimento de que Yentl é uma jovem, filha única (seu irmão faleceu), órfã de mãe, e que cuida de seu pai enfermo, de quem recebe os ensinamentos da Torá e do Talmude. Com a morte do pai, Yentl sai de sua cidade com o objetivo de continuar os estudos, mas sabe que como mulher será impossível, por isso se veste de homem, Anshel, para ser aceita em uma yeshiva. Com esta apresentação, o espectador entra em contato com a cultura patriarcal na qual a protagonista foi educada e começa a criar uma expectativa sobre a questão que se impôs: ela conseguirá ou não continuar os seus estudos?
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Yentl |
Porém, no primeiro ponto de virada o seu objetivo é ameaçado, pois conhece Avigdor, um judeu ortodoxo e bem conceituado na yeshiva. Ele sugere que Anshel/Yentl estude nela e o/a leva para submeter-se a uma entrevista com um rabino que a aceita e indica Avigdor para ser seu orientador. Anshel/Yentl e Avigdor passam a estudar juntos e a dividirem o mesmo espaço domiciliar. Este aspecto vai provocar no espectador uma série de reações e questionamentos: será que ela vai desistir de tudo e se casar com ele? Será que ela irá renunciar ao seu sentimento e seguir os seus estudos ou será que ela continuará os estudos casada com Avigdor? O conflito se instaura.
No início do século XX, as mulheres tinham um espaço de circulação mais restrito devido aos papéis de esposa e mãe já cristalizados como valor pela sociedade. As mulheres daquele tempo que questionavam a sua condição eram execradas e tinham que viver isoladas, nas bordas da sociedade, com muitas dificuldades de sobrevivência. A conciliação entre os objetivos intelectuais com os matrimoniais dentro de uma cultura religiosa alicerçada nos valores patriarcais era impensável para a mulher.
A segunda virada deflagra o clímax, pois consciente da impossibilidade de realizar todos os seus desejos, Yentl opta por continuar os seus estudos, abrindo mão de uma realização amorosa que, embora fosse importante, não era o seu objetivo maior. Esta escolha culmina com a cena em que ela está em um navio partindo para um lugar (suponho Estados Unidos) onde as mulheres podiam ser aceitas nas yeshivas.
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Anshel/Yentl e Avigdor |
Enfim, com estes elementos do roteiro fílmico podemos, através da análise estrutural, ver os sentidos se construindo, revelando um filme feminista centrado em uma protagonista que prima por sua liberdade (e a do outro), busca ultrapassar as barreiras culturais e faz escolhas e se responsabilizando por elas.
Um filme feminista e existencialista, sem dúvida, que nos faz pensar nas condições atuais das mulheres neste início do século XXI: as mulheres conseguem conciliar as atividades intelectuais com as tarefas domésticas? Do que as mulheres abrem mão quando se dedicam profundamente aos estudos? Por que é mais difícil aceitar que uma mulher apenas estude ao contrário daquela que apenas se dedica à casa? Que tipo de poder está em jogo?