sábado, 25 de setembro de 2010

Quando se gosta, se quer saber a história

Quando gostamos de alguém, seja qual for o nível de afeição, somos compelidas a querer conhecer o objeto da nossa afeição, incluindo a sua história. Durante um bate-papo,  enquanto a pessoa faz um percurso nos labirintos da memória, guardamos várias informações que são selecionadas de acordo com os nossos interesses: as ações, o momento em que aconteceu, os nomes das pessoas que fizeram parte de sua história de vida, enfim, uma série de dados que nos ajudam a fazer conexões e que nos levam a endender o sujeito que está ali diante de nós. Mas isso não acontece apenas nas relações interpessoais...

Quando dizemos que gostamos de cinema, temos afeição por ele, temos a necessidade de conhecer a sua história, quando e onde tudo começou, quem eram as pessoas envolvidas, o que elas pensavam e quais foram as suas contribuições para o cinema hoje. Mesmo que as relações não sejam tão lineares, porque o movimento não se apresenta dessa forma, mas como fluxo e refluxo, apontando para multidireções, o cinema que temos hoje é resultado de ações anteriores de homens e mulheres.

Às vezes me pego pensando se para ser um crítico de cinema seria melhor ler os livros teóricos, dos estudiosos, ou ver os filmes de diferentes épocas e de autores diversos, atentando comparativamente para as "especificidades do cinema" ou os temas propostos pela película.

Por formação acadêmica, tendo  a buscar nos livros a  segura e confiável (?) companhia nessa jornada, mas não é o suficiente. Assim, se por um lado o livro ajuda a situar o leitor em formação crítica para os elementos fundamentais da análise cinematográfica, assitir aos filmes dá ao crítico em formação uma experiência única e fundamental. Deste modo, estudar cinema corresponde a ter interesse por tudo que diz respeito a ele, mesmo que haja um recorte específico, como no meu caso. Conhecer a história, as teorias, a linguagem cinematográfica, o making off, a vida dos artistas e diretores e como o discurso é construído em torno destes. Estudar cinema é racionalizar o cinema, pensar na linguagem cinematográfica enquanto se assiste a um filme, por exemplo. Rir de si mesma, quando você se flagra com os olhos lacrimejantes diante de uma cena melodramática (e não são poucas). E você diz a si mesma: que recurso! (recompondo-se da cilada da transferência).

Certa vez, conversando com uma amiga, ela me perguntou se eu não "relaxava" quando assistia a uma peça de teatro, um filme ou escutava uma música. Isso porque tinha dito a ela que analisava o que via sempre por um viés feminista. Disse a ela que era muito difícil ler um texto sem acionar os conceitos e todo o acervo que se dispõe, principalmente depois que se perde a ingenuidade com os dispositivos teóricos. Não funciona como um interruptor que você liga e desliga. Mas confesso que com os filmes, por conta do fluxo da narrativa, do uso dos sofisticados  recursos cinematográficos, cada vez mais ágeis, coloridos e sonoros, às vezes adormeço e começo a sonhar, mas é por um breve tempo. É quando a crítica ri da espectadora e lança um olhar compreensivo e, ao mesmo tempo, indagador.

Ao assitir a um filme, fico fascinada não apenas com os elementos que compõem o filme  mas, sobretudo, quando tomo a consciência de que estava sendo conduzida pela trama. É no mínimo divertido ser sujeito e objeto da análise fílmica. O estudo da espectatorialidade é, no meu entendimento, um dos estudos mais importantes atualmente sobre cinema, pois ele consegue articular tudo que envolve o cinema desde os elementos intrísecos, como a linguagem cinematográfica, até os extrínsecos, como as políticas públicas e as questões de distribuição e exibição.

Quando assisto a uma filme dirigido por mulheres, por exemplo, procuro ver a ficha técnica e a sua composição, pois muitas preferem trabalhar majoritariamente com mulheres; fico interessada em ver como elas vão abordar determinado assunto, quais as estratégias usadas, o gênero dos filmes, quais e como as experiências de mulheres são colocadas no filme, quais as tensões e o que não fica resolvido. Para além do filme, interesso-me pela inscrição de uma história de cinema em que as mulheres apareçam como sujeitos e não apenas como musas, fruto de um "male gaze" de diretores. Interesso-me pela quase total ausência de livros de viés feminista sobre as mulheres diretoras no Brasil e na Bahia (o autorismo necessário para dar visibilidade a um lugar inóspito às mulheres) e pela quase ausência também de livros sobre a recepção (espectatorialidade) das muheres que assistem aos filmes nos multiplexes, quase todas meninas e adolescentes, pois como bem disse Setaro certa vez em uma entrevista, hoje os filmes são quase todos voltados para esse público e, acrescento, mesmo aqueles feitos para adultos estão pincelados com tintas excessivamente coloridas e juvenis.

Mas gostar de cinema, assim como das pessoas, exige um envolvimento completo, dialógico, dialético, entendendo que a completude se dá através de relação metonímica, em que as partes formam o todo, mesmo que as partes sejam conflitantes e nem tão harmônicas (e nem deveria). Para entender o cinema em sua totalidade (se é que é possível) deve-se atentar para as suas particularidades e diversidade. As mulheres, sem dúvida, fazem parte da história do cinema, mas que precisa ser investigada e contada de uma forma mais sistemática.

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Canal Brasil: Dias Contados?

Soube recentemente pela atendente da SKY que o Canal Brasil deixará de existir. Segundo ela, não há público interessado pela programação exibida pelo canal. Se localizar um filme nacional já era uma tarefa exaustiva, com a retirada de um canal específico, o acesso aos filmes nacionais ficarão mais raros ainda para o espectador.

O problema do Canal Brasil é que os filmes exibidos são, em geral, longas atuais, quase sempre comédias-românticas exibidas exaustivamente e repetidamente no canal. Filmes mais antigos são raros, como os de Galuber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Bruno Barreto e os filmes produzidos pela Companhia Vera Cruz.

A retomada do cinema brasileiro mostrou um público novamente interessado pelo cinema nacional, mas não despertou, a meu ver, para as massas "do multiplex" (as que me interessam), o gosto pelo cinema, pois gostar de cinema, sobretudo brasileiro, exige um olhar para a sua totalidade: saber a sua história, o seu funcionamento, etc.

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Uma Mulher no Cinema de Caetité

Quando fui aprovada em concurso público para o município de Caetité, quis conhecer logo a cidade. Soube por colegas que havia um arquivo público que reunia parte da memória do município através dos impressos. Dirigi-me para lá. Havia um projeto em andamento, na época, com o propósito de conservar os textos e uma proposta também de microfilmar todo o material.

Durante a pesquisa, conheci um jornal local chamado A Penna, dirigido por João Gumes e fundado em 05/03/1858. Havia também um outro jornal intitulado O Dever.  Nestes jornais, pelo menos os que estavam em condições de manuseio, me interessei em saber como viviam as mulheres naquela época . Então, busquei nas páginas e seções os espaços de atuação das mulheres naquela sociedade, como eram citadas e  como participavam da vida cultural da cidade. Além disso, queria saber se eram assinantes do jornal e se contribuiam em alguma seção.

Encontrei várias referências às mulheres: mulheres que adoeciam, se casavam, se suicidavam, eram violentadas, mas, também, mulheres que se destacavam nas artes e profissões. Nas profissões, o destaque era dado às professoras e nas artes às escritoras. Maria Zita, de Bom Jesus dos Meiras, por exemplo,  escreveu vários poemas que foram publicados nos jornais (ver http://www.mulhereliteratura.blogspot.com/).

Prosseguindo a investigação por mulheres literatas, deparei-me com um fato que me chamou a atenção. Em Caetité, havia um cinema chamado Cine-Vitória que tinha sido reinstalado por D. Maria Pinho de Castro em 22/09/1957.  Uma mulher, portanto, de visão artístico-empresarial que trouxe de São Paulo todo o equipamento necessário para a instalação do cinema na cidade. Certamente é um dado relevante para ser incluído na história do cinema da Bahia, mas que, admito, precisaria de uma pesquisa mais aprofundada sobre a importância do cinema naquela cidade.

terça-feira, 14 de setembro de 2010

UM FILME FEMINISTA PERDIDO NA MEMÓRIA

Há um filme feminista que assisti há quase dez anos, mas não me lembro o nome. Sempre que me encontro com algum cinéfilo, acabo contando um trecho para ver se a pessoa consegue se lembrar. E antes que o filme se perca definitivamente na minha memória ou ela trate de distorcê-lo demasiadamente, compatilharei com vocês o trecho assistido. Quem sabe algum de vocês já não tenha visto?

O filme é do gênero ficção científica. Lembro-me que o cenário era composto por uma terra quente, árida, sem vegetação, habitado apenas por pequenas tribos formadas por mulheres. Cada tribo vivia de uma riqueza natural, além de ser chefiado por uma mulher, uma delas a protagonista, uma anciã. Certo dia chega um homem e uma das tribos o acolhe. A partir daí tudo se modifica: ele tenta se envolver com uma das personagens, que já tinha um relacionamento, provocando conflito entre elas, e tenta, ainda, roubar a riqueza das outras tribos, provocando a discórdia entre elas (e pensar que as mulheres levaram, por séculos, a pecha de destruidoras da humanidade).

No final, lembro-me que a anciã o expulsa daquela região, depois de tantos malefícios, e enuncia algo do tipo: eu conheço a sua espécie. Enquanto ela olha o homem se afastando, aparece a imagem de uma jovem que se alterna com a dele, em outro momento histórico. O que me fez entender que ambos tinham tido algum contato anterior quando ela era jovem e, como ele permaneceu com a mesma imagem, concluí que ele havia sido congelado.  Então ele diz que não estava sozinho, que além dele havia mais 12 (acho que a quantidade era essa) espalhados para reconquistar o mundo. O filme termina com a câmera focalizando ele de costas, sendo banido.

Este final dá a entender que os homens ocupavam o poder em um dado momento histórico e que o momento do filme seria a tentativa de reconstrução do mundo pelas mulheres, um mundo destruído, quase desabitado, sem vegetação, sem animais, árido, e que as poucas mulheres resolveram se organizar para reconstrui-lo. E neste momento, quando elas já estão fortalecidas, aparece um homem para desestabilizar com os métodos já conhecidos: infiltração, incitação de disputas, usurpação, guerra.

O filme é claramente anti-patriarcal e sumiu das telas de TV. Na época, assisti quando tinha NET 

A ESTRANHA PASSAGEIRA (NOW, VOYAGER, 1942)

Título original:Now, Voyager

Gênero:Drama
Ano de lançamento:1942
Estúdio:Warner Bros.
Distribuidora:Warner Bros.
Direção: Irving Rapper
Roteiro:Casey Robinson, baseado em livro de Olive Higgins Prouty
Produção:Hal B. Wallis
Música:Max Steiner
Fotografia:Sol Polito
Direção de arte:Robert M. Haas
Figurino:Orry-Kelly
Edição:Warren Low

Quando assisti ao filme A Estranha Passageira percebi que havia alguma coisa nele que não podia ser atribuída a um olhar que não fosse do lugar da experiência de uma mulher. De fato, o filme foi baseado no romance de Olive Higgins Prouty uma romancista norte-americana que escreveu durante o período da primeira e a segunda guerra mundial e que tratava em seus escritos da importância da mulher na sociedade. O filme A Estranha Passageira não poderia ter melhor atriz para protagonizá-lo, já que Betty Davis ficou famosa por encarnar papéis de mulheres fortes e independentes como Julie Marsden em Jezebel, e Margo Channing em A Malvada. Não é diferente em A Estranha Passageira no qual vive o papel de Charlotte, a única filha da Sra. Henry Windle Vale (Gladys Cooper) que ficou responsável pelos seus cuidados. O extremo controle sobre a filha impediu Charlotte de viver a liberdade ilustrada no filme com as experiências próprias da juventude, como os namoros. O cerceamento levou a personagem na maturidade a uma crise nervosa que, por orientação psiquiátrica, foi tratada em uma clínica de repouso. Ao sair, fez uma viagem ao Brasil (Rio de Janeiro) onde, durante a viagem, conheceu um homem por quem se apaixonou e foi correspondida, dando origem a um caso. Por ser casado, embora um casamento problemático, com esposa doente e filha rebelde, os encontros deixaram de acontecer com a chegada de ambos nos Estados Unidos. Charlotte volta para casa  e, embora o relacionamento com a mãe não tenha melhorado, aprendeu a se poupar e a controlar as suas emoções. Com a morte da mãe, em um momento de discussão entre as duas, Charlotte se sente culpada e retorna à clinica para pedir ajuda ao psquiatra, mas encontra uma adolescente também com problemas, chamada Tina, e se identifica com a menina, passando a cuidar dela. Mais tarde descobre que a menina é filha do homem com quem teve um caso no Brasil e resolve "adotá-la". Adiante, quando Charlotte reencontra em sua casa o amante, ela já é herdeira da fortuna da família, e propõe a ele que lhe permita continuar a cuidar da filha. Ele resiste por achar abusivo e, cheio de dignidade, nega-lhe de início, mas ela faz o pedido parecer-lhe mais um contentamento do que um fardo, já que estaria cuidando da filha do homem que ama. Diante do interdito social que os impedia de ficarem juntos e diante da possibilidade do filme terminar com uma mulher sozinha, solteira e rica, a saída foi a maternidade, ainda que de empréstimo. O espectador dos anos 40 (e muito menos os de hoje) ainda não estava preparado para um final tão positivo para as mulheres solteiras, sexualmente livres, por isso canaliza a sexualidade feminina para o exercício da maternidade.

O filme é de uma violência psicológica muito forte, pois expõe de forma contundente as tensões existentes no espaço da familiar, considerado "doce lar", para mostrar uma relação dificílima de mãe e filha, com diálogos duríssimos entre ambas. A mãe passa a representar a autoridade patriarcal e acaba submetendo a filha, apesar de ter outros filhos (homens), ao seus propósitos, e faz com que ela viva em função do papel exclusivo e único de filha. Em nenhum momento os filhos aparecem no filme, apenas são citados, deixando claro que a filha, a mulher, dentro do modelo de sociedade patriarcal não tem voz, nem vontade própria. A filha que vive a sua sexualidade reprimida e, também, é exilada de outros contatos mais amplos de afetividade, vai aos poucos ficando ressequida e amarga. O curioso é que no início do filme mãe e filha estão em uma embarcação e, em um dado momento, a filha é flagrada com um marinheiro dentro de um carro entre beijos e abraços (hoje fala-se em amasso). Na maturidade, quando ela se relaciona com um homem, ela também está dentro de um navio e se apaixonando por um passageiro. O filme mostra duas situações semelhantes em contextos diferentes em um mesmo modelo de sociedade. Assim, sugere os mecanismos de controle da sociedade sobre a sexualidade da mulher, tendo a família (a mãe) como o espaço de controle da sexualidade feminina. A ausência física da mãe lhe possibilita maior liberdade, porém o fato de ser uma mulher madura e sozinha gera sentidos que faz com que um homem da embarcação a apresente a um estranho estranho. Quando jovem ela é controlada por gestos repressores da mãe, que tem presença forte em sua vida, impedindo-a de ser livre e independente, já na maturidade, quando a presença da mãe já não tem tanta força, e ela resolve viajar sem a companhia da mãe, ela pôde realizar os seus desejos.  No entanto, essa liberdade sexual só poderia ser vivida em um outro país, o Brasil, com todo o exotismo a ele atribuído, em uma terra estranha, mítica, onde poderia romper com as convenções. Tanto é que, ao voltar, o caso termina e  o papel de amante vai cedendo lugar para a maternidade. A protagonista vai ficando assexuada.

Ainda assim, é um filme que traz um recorte histórico, de classe e gênero que mostra com bastante lucidez os conflitos vividos por mulheres de classe alta em uma sociedade patriarcal e coloca a questão de gênero dentro de uma discussão profícua, pois ao trazer relações de poder entre mãe-filha, desloca o eixo sexual binário na oposição macho/dominador e fêmea/dominada, para problematizar as relações de poder nos papéis sociais. O filme, neste aspecto, é exemplar para esta discussão.

Breve biografia: Olive Higgins Prouty (January 10, 1882-March 24, 1974) was an American novelist, most active in the period between the First and Second World Wars. In this interval between women's suffrage and women's liberation, when few openly questioned the notion that a woman's fulfillment is to be found in a subordinate role, Prouty insisted on the importance, for women as well as for men, of independent judgment, freedom from illusion, and full personal responsibility for one's actions. Her stories depict the struggles of American women to achieve a life of integrity despite the stifling triviality of the social roles allotted to them. Of her ten novels, the best known are Stella Dallas (1923) and Now, Voyager (1941). Disponível em: http://www25.uua.org/uuhs/duub/articles/olivehigginsprouty.html

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

FOTÓGRAFAS E MONTADORAS

Soa estranho, mas é isso mesmo.

Se a direção de um filme é um campo quase invisível para as mulheres, imaginem as fotógrafas e as montadoras (ou editoras).

Recentemente, pesquisando um filme, localizei duas: Sharone Meir a diretora de fotografia do filme Treino para a Vida (Coach Carter, 2005) e a montadora (ou editora) Madeleine Gavin do filme Quase um Segredo (Mean Creek, 2004). Talvez vocês me digam que existem muito mais delas, mas confesso que não chegava a dar a devida atenção por não conhecer a fundo o papel do fotógrafo e do montador de um filme.
Fico me perguntando se haveria alguma diferença na forma das mulheres captarem uma cena, muito embora a linguagem cinematográfica tenha um código estabelecido para planos e ângulos. No entanto, como por meio dessas ferramentas, da linguagem do cinema, as mulheres têm inserido um olhar que possa deixar escapar alguma ideia diferente do que já existe? Será que elas apenas reproduzem ou vão mais além?

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

HISTÓRIAS DE CINEMA

Se fôssemos escrever a nossa autobiografia, o cinema estaria presente nela? Que lugar o cinema ocupa em nossas vidas? O cinema foi apenas entretenimento ou cumpriu um outro papel? Foi tentando responder a estas perguntas que me veio a ideia de postar a minha brevíssima história com o cinema.

Antes de mais nada a minha história com o cinema começa paralelamente ao meu contato com a televisão, talvez um pouco antes. A memória já deixa escapar certos detalhes. No entanto, lembro-me que o meu primeiro filme foi Cinderela, um desenho animado de Walt Disney. Eu não sei exatamente precisar qual o impacto do filme em minha vida, mas me lembro de um estado de encantamento. Morava no subúrbio ferroviário de Itacaranha que nos anos 70 era um lugar "far far away" (expressão que remete ao desenho Shrek dado ao nome do reino - "tão tão longe"). Então ir ao cinema era uma tarefa árdua para a minha mãe que tinha que pegar o trem, subir o Elevador Lacerda, sem contar com todo o processo que antecedia: vestir as filhas. Somos quatro.

Com a televisão (a nossa primeira foi uma Empire, preto & branco) começamos a trocar o quintal ou, na melhor das hipóteses, alternar com a televisão. Passamos a assistir aos seriados que eram muito populares. Tinha aproximadamente 8 anos de idade. Imagens como o foguete Apolo, o cabelo de Elis Regina cortado bem baixinho, as escolas de samba com as suas alegorias (mesmo sem cores) preencheram o meu imaginário. Mas, por incrível que pareça, era Roy Rogers, o cowboy comportado, que fazia a gente sentar diante da TV e colecionar os pacotes de biscoitos Tupy para concorremos aos prêmios. Era divertido, pois tinha uma parte que era gravação local. Depois de assistirmos ao seriado, colocávamos o travesseiro na cabeceira da cama (servia de sela) e galopávamos, encenando aquilo que víamos na TV. Do lado de fora, o pé de araçazeiro virava o submarino, aquele do seriado Viagem ao Fundo do Mar, com direito a sonoplastia que fazíamos com a boca. A hierarquia entre Major e Capitão se dava pela habilidade de subir no pé de árvore. Quem fosse até "o olho" (o topo) recebia o título de Capitão. Então, como eu ficava no meio do caminho, era a Major Lee, enquanto que a minha irmã mais velha era o Capitão Nelson. A caçula, como não subia na árvore, era o monstro marinho (não sei dizer qual o impacto em sua vida em ter sido monstro marinho algum dia).

Na adolescência, os filmes que assistíamos eram todos basicamente dos anos 40 e 50. A minha mãe influenciava bastante. Ela gostava de todas as melodias: Melodia Imortal (1956) e Melodia Interrompida (1955). Sendo que o primeiro era o nosso preferido. Aprendíamos os nomes dos artistas e anotávamos para não esquecer. Só hoje entendo a razão que levou o cinema a projetar seus filmes na televisão, nos anos 70, em geral filmes dos anos 40/50. É que com a chegada da televisão, a indústria cinematográfica norte-americana foi afetada drasticamente pela nova invenção e começou a entrar no novo negócio, vendendo os direitos de exibição dos filmes para a TV, diversificando a fonte de lucros.

Com mais idade, passei a ir sozinha ao cinema, às vezes com minha irmã caçula. Ia aos cines: Excelsior, Tamoio, Guarani, Bahia e Bristol. Neles assiti a diferentes filmes: Rambo, Rocky, O Sol da Meia-Noite, A Testemunha, Camila (Argentino), Alien, Contatos Imediatos do Terceiro Grau, Grease, entre outros. Mas a TV ocupava um lugar preponderante porque era mais barata, segura e cômoda. Os melhores filmes passavam de madrugada, no Corujão. Colocávamos o relógio para despertar e dormíamos durante a tarde, a fim de não sentir sono durante a exibição do filme de madrugada. Amanhecíamos assitindo aos filmes, mas isso só aos sábados, por causa das aulas. Os filmes desse horário eram excelentes. Vi, certa vez, um filme com John Malkovich o qual não me lembro o nome. O filme era em preto e branco e ele narrava a história de sua família e toda a ação se passava apenas em uma sala. O curioso é que ele não fazia parte da ação, mas aparecia como narrador. Era de uma dramaticidade incrível. Nunca tinha visto um filme assim e me impressionou muito. Da mesma forma que A Filha de Ryan, um filme magistral de David Lean, me marcou profundamente. A expulsão de Rose Ryan da cidade por adultério deve ter ajudado a me interessar pelas questões das mulheres.
Nunca deixei de ir ao cinema. Houve épocas que colecionava duas revistas: Cinemin e Set. Atualmente tenho tentado transformar este acervo em crítica, estudando as teorias e tentando aplicar aos filmes que assistia e que revejo com um outro olhar. A cinefilia como um simples gosto se transforma em uma leitura mais criteriosa, em exercício do pensar, em reflexões críticas.

Esta é uma pequena parte da minha história com o cinema. Qual a sua?

A ética e o mérito nas produções acadêmicas

Em meio a tantas coisas que nos deixam tristes em nosso cotidiano, eis que nos deparamos com uma postura que muito nos faz acreditar em...