sexta-feira, 10 de junho de 2011

O cinema e A MORAL PARA AS MASSAS

Costuma-se atribuir a D. W. Griffith a paternidade da narrativa cinematográfica, muito embora Helena Maura cineasta e crítica de cinema tenha dito em seu artigo Sexo Frágil e o Cinema - 1896 à 1954 que...


...“Uma das principais representantes desse período foi a francesa Alice Guy-Blaché (1875-1968), a primeira diretora de filmes da história, que chegou a dirigir, produzir e/ou supervisionar cerca de 300 filmes em sua vida. Ela aparece também, causando controvérsias, como a verdadeira criadora da narrativa para o cinema. Teríamos então não um "pai" da narrativa no cinema, Georges Méliès, e sim uma "mãe", Alice Guy, já que seu primeiro filme La Fee aux Choux (algo como A Fada nas Couves), de 1896, foi realizado alguns meses antes do filme de Méliès.”(grifos meus)


Se a narrativa de cinema teve seu início na França ou nos Estados Unidos, por um homem ou uma mulher, a questão é que desde a sua origem ele teve uma tendência para as massas, com histórias melodramáticas em que os gestos nobres, de valores morais intocáveis, são salientados mesmo em condições adversas. D. W. Griffith e Jean Renoir, por exemplo, levaram para as telas dramas protagonizados por jovens heroínas desventuradas. Em As Duas Tormentas, 1920, de D. W. Griffith, já discutido neste blog [colocar link], uma jovem pobre é seduzida por um homem rico e que, por razões morais puritanas, é aceita inicialmente por uma família de fazendeiros, mas que logo é expulsa ao saber da verdade sobre o passado da moça. A personagem, desamparada e desesperada, caminha com dificuldades na tempestade de neve e desfalece à beira do rio. Durante o degelo, a placa onde está deitada descola-se da margem e se dirige para a cascata, mas ela é resgatada pelo rapaz. Outro filme do mesmo diretor, Intolerância, 1916, é um dos mais expressivos vistos até agora, pela sua proposta arrojada para a época, trazendo quatro histórias paralelas em tempos e espaço diferentes. Uma de suas histórias, a contemporânea, mostra uma realidade semelhante a do filme anterior, pois a divisão de classe será o esteio das narrativas. O enriquecimento de alguns membros da sociedade acentua uma moral hipócrita e cínica, e o ciúme, a inveja e a avareza lançam ao abismo da morte simbólica ou física os menos afortunados. Se em As Duas Tormentas, Griffith traz uma protagonista pobre, órfã (a mãe morre antes de o filho nascer), seduzida por um homem rico, em Intolerância a história mostra que a diferença de classe e de status dos papéis sociais, e não apenas a diferença de sexo, será responsável pelo infortúnio das pessoas pobres, principalmente das mulheres. Há uma frase do narrador que diz: as mulheres quando perdem o encanto para os homens, se transformam em moralistas. Com ajuda do capital de um rico membro da sociedade, por intermédio de sua irmã “solteirona”, um partido político é fundado, tendo à frente as mulheres da alta sociedade. A partir do fortalecimento deste grupo, começa a perseguição às festas (a dança e a bebida alcoólica são proibidas) e às mulheres e homens desafortunados. A felicidade dos pobres é uma afronta aos ricos e aos que vivem da miséria alheia, a exemplo de um casal que tem a sua vida quase destruída por causa de uma esposa traída, igualmente pobre, e de um gangster abandonado. No final, como se trata da narrativa contemporânea, Griffith deixa uma mensagem positiva e o marido acusado injustamente de assassinato é tirado da forca diante da confissão do verdadeiro assassino. Depois disso, o casal tem o seu bebê novamente em casa, antes tirado à força pelas paladinas. Neste momento, Grifith mostra como o Estado (política) e o capital (doações de empresários) se unem contra os mais desvalidos.



O filme Intolerância merece uma postagem à parte, que farei em outro momento.

Já o cineasta francês Jean Renoir, quatro anos depois de As Duas Tormentas, lança Catherine: uma vida sem alegria. O mote é o mesmo: uma mulher pobre, filha de uma empregada doméstica, órfã, é criada pelos patrões, mas, na juventude, se vê em apuros porque a patroa começa a maltratá-la, apesar da proteção do patrão, um deputado de prestígio. Este, vendo a tirania da esposa, leva a jovem para morar com uma irmã cujo filho, um homem maduro, não consegue se casar porque tem saúde debilitada. Certo dia, no carnaval, a jovem e o homem condenado dançam na sacada em frente ao entrudo que passava na rua. O homem tem um ataque cardíaco fulminante. A sua morte faz com que as mulheres da alta sociedade se voltem contra a jovem, expulsando-a da cidade, o que a leva até Nice. A sua moral é posta em questão e vendo-se envolvida em um ambiente hostil, volta para a cidade de onde partira forçosamente, mas não é aceita por ninguém. Quando está caminhando encontra o deputado que a acolhe novamente e lhe dá o posto de secretária, situação que desagrada a esposa que deixa e segue para a casa dos pais. Diante disso, os apoiadores à candidatura do deputado começam a ser influenciados por um dos representantes de partido, cunhado do deputado. Catherine, ao ouvir uma conversa sobre o prejuízo que a sua presença poderia trazer para a candidatura do seu protetor, lança-se pela estrada e dorme em um vagão. Dois bandidos que passavam por ali o põem em movimento, lançando-o em direção ao precipício. Ao mesmo tempo, o deputado consegue localizar a jovem e parte para salvá-la. Um rapaz que está no carona do carro, pede que ela aperte o freio do vagão que, por sua vez, desacelera. No final, o deputado e a jovem aparecem dentro de um trem, para recomeçar uma nova vida juntos.

As narrativas fílmicas de Griffith (As Duas Tormentas) e Renoir (Catherine: uma vida sem alegria) trazem como protagonistas duas mulheres desafortunadas e que são maltratadas devido à questão de classe e de gênero. Pensando nisso, os dois filmes são exemplares em mostrar a vida de pessoas comuns, pobres, e o que a busca ou manutenção do poder podem fazer à vida das pessoas. Mas não é apenas a tematização da pobreza, das desigualdades sociais ou dos valores morais de um grupo social que torna os filmes “para as massas”, mas a sua estrutura folhetinesca, catártica, isto é, como é narrado, filmado em linguagem cinematográfica. Mesmo sem os sofisticados recursos que vemos nos filmes atuais, o close up se apresenta nos filmes como um recurso importante para acentuar a carga dramática, além da performance dos atores.A música ao fundo, que acompanha os estados emocionais que se quer provocar no espectador, é fundamental no cinema mudo, com destaque para o piano acelerado para as cenas de ação e o violino melódico e plangente para as cenas de amor. O cenário bucólico ou noturno forma também o arcabouço de uma cena de amor que, articulado aos componentes mencionados, ajudam a compor os folhetins fílmicos. Vale ressaltar a estrutura da narrativa, já que a heroína, que mesmo na adversidade extrema mantém uma moral inabalável, precisa passar pelas peripécias para em seguida ser resgatada apoteoticamente pela sociedade, pelas mãos de um homem de conduta igualmente intocável, neste caso com o casamento. Este filme merece também uma postagem à parte.

Para reflexão: Que efeito teria, nos anos 20, a tematização de filmes com heroínas pobres e maltratadas que suplicam consciente ou inconscientemente por um homem rico que as proteja? O que significa um “final feliz” entre um homem rico e uma jovem pobre? Considerando que o cinema cumpria uma função social e pedagógica, qual seria o seu papel neste momento de expansão ideológica?

Nos filmes, os diretores não atribuem apenas a vilania aos ricos ou aos homens, mas a um caráter, a uma falta de tolerância nas pessoas que pode materializar-se entre ricos e pobres, homens e mulheres, velhos e moços, entre outras configurações. É como se houvesse uma inclinação natural, uma índole que, independente das adversidades ou benesses, ela se manifestaria.

Às mulheres de conduta irrepreensível, os diretores premiam com um final feliz.

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