terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Crepúsculo (Twilight, 2008)

Ficha Técnica (parte):

Diretora: Catherine Hardwicke
Roteirista: Melissa Rosenberg
Autora: de Stephanie Meyers
Produtoras Executivas: Karen Rosenfelt e Michele Imperato Stabile
Produtores: Mark Morgan, Greg Mooradian, Wyck Godfrey
Elenco (principais): Kristen Stewart (Isabella Swan), Robert Pattinson (Edward Cullen), (Charlie Swan), Peter Facinelli (Dr. Cullen), Elizabeth Raeser (Esme Cullen)

Demorei de postar uma reflexão sobre o filme Crepúsculo (Twilight) porque só agora assiti em DVD. Quando passou nos cinemas, não fui porque não me senti motivada, mas, diante de tanta publicidade e envolvimento de algumas jovens com as quais tenho contato, resolvi aventurar-me na narrativa vampiresca de Stephanie Meyers, autora da saga publicada em quatro livros (Twilight (Crepúsculo), New Moon (Lua Nova), Eclipse (Eclipse), Breaking Down (Amanhecer)). Destes, apenas os dois primeiros foram lançados em filme.

O filme tem tido bastante repercussão entre o público adolescente e jovem, mas que se estende para adultos que se identificam de alguma forma com aspectos narrativos do filme, com o tema, o comportamento das personagens, com a paisagem bucólica e chuvosa de Forks, enfim, alguma coisa que toque o espectador. E aqui reside a questão: o que de fato toca o espectador e quais as estratégias usadas para que isso aconteça? A presença dos protagonistas nas revistas para adolescentes (meio impresso), em programas de TV (audiovisual de massa), nos cartazes de divulgação (meio visual) e site oficial do filme na internet (audiovisual de amplo alcance) que, por sinal, comercializa produtos temáticos - bolsas, camisetas, acessórios, jóias -, mostram a tentativa dos produtores em transformar Crepúsculo em um filme que não apenas gere bilheteria, dê lucro por diferentes vias, mas que marque uma geração. Eis um projeto ambicioso. Além disso, retextualizar outras narrativas, atualizando-as, para serem apresentadas em um momento histórico marcado por crises em diferentes práticas sociais.

Os elementos intertextuais no filme saltam aos olhos, inevitável a comparação com os filmes Drácula e Romeu e Julieta. A estória de Isabella Swan e Edward Cullen é uma "costura" entre vários textos formulados em estória de amor no estilo mais romântico-burguês, com direito a uma boa dose de spleen.  Provavelmente, essa atmosfera gótica que envolve mistério, penumbra e forças sobrenaturais tenha provocado a liga necessária para envolver o público, sem se esquecer, claro, de todo suporte publicitário.

Crepúsculo é uma estória de amor do século XXI, assim como foram o filme Uma História de Amor, (Love Story, 1970), de Arthur Hiller, com Ali MacGraw e Ryan O’Neal nos papéis principais, e Amor sem Fim (Endless Love, 1981) dirigido por Franco Zeffirelli, com Brooke Shields e Martin Hewitt. Estes obtiveram sucesso também com a trilha sonora Where do I Begin, de Carl Sigman e Francis Lai, e Endless Love, de Lionel Richie, respectivamente. Uma época em que trilha sonora era tão importante comercialmente quanto o filme. Os ingredientes dessas estórias são as mesmas: a presença do herói e heroína românticos, a jura do amor eterno, a prova de amor, o amor impossível (ou quase) as idéias de fidelidade, felicidade e realização plena, o mito da alma gêmea, o sacrificio (morrer por amor), amor espiritual, e outros. Esses elementos vêm alimentando a imaginação de mulheres e homens há séculos. O cinema apenas trouxe para a sua própria linguagem.

Crepúsculo é produzido em 2008 em um momento considerado por muitas autoras feministas como backlash, isto é, de reação antifeminista, no que eu concordo, porém, receio os extremos e as possíveis e previsíveis distorções. ISegundo a crítica feminista contemporânea, pelo menos um grupo, isso significa dizer que as produções atuais estariam condicionadas ao contexto sociohistórico a partir do qual as mulheres seriam retratadas nos textos dependentes do homem, fazendo com que, muitas vezes, o personagem masculino cresça no filme mais do que o feminino, fazendo com que a vida da mulher gire em torno da do homem. 

O filme narra uma estória de amor aparentemente impossível - aliás elemento-chave neste tipo de narrativa, pois existindo o amor, ele precisa aparecer inicialmente difícil, com obstáculos a transpor e, acima de tudo, colocado à prova - entre um jovem vampiro e uma jovem humana. Até aqui nada demais porque as estórias de vampiro são pautadas na sedução, na atração que o vampiro exerce sobre as suas vítimas com o intuito de sugar-lhes o sangue, tirar-lhes a vida. Em Crepúsculo, Edward é um vampiro "vegetariano" (não precisa das pessoas para viver) que tem buscado manter o autocontrole, alimentando-se apenas de animais (aqui há uma separação entre seres humanos e animais), mas Isabella é a unica que o provoca, "é a sua droga". O esfoço de Edward consiste em não perder o controle com Bella e nesse contexto percebo uma associação entre sangue, vida e sexualidade, pois a aproximação física, sexual, entre os dois pode significar a morte da personagem. A partir disso, o amor torna-se espiritualizado, sublima-se o desejo sexual, dada a impossibilidade ou dificuldade inicial de uma aproximação física, outro elemento importante das estórias de amor. Essa impossibilidade torna o filme fortemente sensual, pois sugere muito mais do que realiza. Esse jogo aguça inevitavelmente o imaginário do espectador e da espectadora paralela a sensação de realidade promovida pela estória de amor, o que facilita o caminho para a projeção do desejo de viver na vida real o que se vê na tela. Lembrei-me de A Rosa Púrpura do Cairo, 1985, filme magistral de Woody Allen, em que a personagem vivida por Mia Farrow, que adora ver filmes,  vive no mundo real um mundo dos sonhos. Essa tênue linha entre sonho e realidade que o cinema hollywodiano construiu através da fabulação é tensionada quando o personagem do filme vivido por Jeff Daniels "sai" da tela e interage com a espectadora e ambos vivem uma história de amor na vida real. Em Crepúsculo, os ingrediente do filme contribuem enormemente para construir uma adesão entre espectador e a narrativa, acentuando a diluição da linha entre sonho e realidade ao investir na fantasia, no inalcançável, o que parece contraditório, mas que a meu ver, é justamente o que alimenta a imaginação e o desejo.

A questão em torno da sexualidade pode ser identificada no filme com as raras cenas em que os protagonistas se beijam, em outras palavras, é na ausência que se faz a presença. Para o código romântico-burguês, o amor transcende o corpo físico, a matéria, por isso fala-se que os amantes se apaixonam pela imagem que eles projetam de si para o outro. No filme, desejar sexualmente o corpo de Bella significa também o desejo de matá-la e, junto a ela (pois estão fundidos), matar o que sustenta o mito do amor: o próprio amor.

Isto posto, vejo que o filme, para além da estória de amor, traz questões muito interessantes como, por exemplo, a tensão entre vida e morte, como já mencionado, a idéia de mortalidade e a imortalidade, juventude e velhice, acrescidos de valores como confiança, solidariedade, amizade, respeito, responsabilidade, amor, medo, sentimentos que atravessam toda a narrativa.

É um filme que confronta sentimentos e nada mais próprio para o seu público que começa a ter uma experiência mais independente em relação à vida. Essa individuação marca a passagem (ou deveria marcar) da adolescência para a fase adulta da juventude.

De uma perspectiva de gênero, o filme opera com uma construção pautada no código ocidental e burguês. O homem protege e a mulher é protegida. Aliás, proteção é uma referência muito presente no filme seja através de um enunciado verbal ou não-verbal. Edward usa a palavra enfaticamente e tem atitudes que correspondem. Ele salva Bella em três situações: 1) quando um carro desgovernado de um colega da escola quase a mata e Edward com força e velocidade (constructo de gênero) intercepta a colisão; 2) quando ela é cercada por cinco homens em uma rua escura e deserta e Edward aparece, de repente, para impedir a ação e 3) quando Bella é perseguida por um vampiro"do mal" e Edward aparece para defendê-la. O maniqueísmo aparece claramente no filme - o bem versus o mal. O sentimento de Bella nestas situações são de medo, impotência, solidão, desespero, e ao ser resgatada com vida por Edward passa a vincular a idéia de segurança a uma necessidade masculina de ser protegida. A ideologia produz essa necessidade.

A ideologia trabalha de forma muito sutil através das materializações das práticas sociais performatizadas no filme: o mundo é perigoso para as mulheres e por isso elas precisam ser proregidas, por isso a sensação de conforto quando o herói aparece em uma situação limite e resgata a heroína. Essa sensação de alívio que a espectadora sente, a meu ver, é o que faz ser, em alguns momentos na vida real, desejado, mesmo sabendo que no dia-a-dia elas terão de se virar sozinhas. Fica a idéia de que o mundo é masculino e de que as mulheres para sobreviverem nele precisam deles.

Os Cullens são vampiros "do bem", vivem em família. O pai é um cirurgião bem quisto pela comunidade e que se esforça para manter a união familiar juntamente com sua esposa, uma afetuosa dona-de-casa. Os filhos são estudantes exemplares: obedientes, disciplinados. Uma família perfeita dentro do projeto burguês (ideal). Bella, por sua vez, é uma jovem introspectiva, filha de pais divorciados e mora com a mãe (real). Por conta de uma viagem da mãe com o atual marido, Bella terá de passar uns tempos com o pai, chefe de polícia da cidade de Forks. Bella é "protegida" duplamente pelo pai - como pai e chefe de polícia - além de Edward. Apesar de Bella parecer algumas vezes destemida e segura, essas qualidades são focadas na sua relação com Edward. A sua força está em superar os obstáculos para que o amor prevaleça. Enfim, é uma força canalizada para o objeto de amor, nesse caso Edward, o vampiro.

Uma das cenas mais fortes na minha concepção é quando Edward "se mostra" para Bella. Ele claramente diz o quanto ele é perigoso - "Se você fosse inteligente, não seria minha amiga". Diz ainda que é um assassino, um monstro, mas Bella parece não se importar. Atira-se aos braços do vampiro mesmo tendo confessado sobre os perigos de ficarem juntos. Aqui está uma outra questão ideológica que marca o filme, pois ao dizer a verdade sobre si, ao se expor, retoricamente Edward se coloca em uma posição vitimizada, pois em seu discurso ele é acometido pelo infortúnio de ser um morto-vivo, o que leva Bella a compadecer-se e aceitá-lo do jeito que ele é. E é exatamente assim que ela age, arriscando a sua vida. Isso, a meu ver, apesar de toda atmosfera fantasiosa do filme que, como já disse, é um recurso potente de adesão, pode causar um efeito complicador na vida das mulheres reais, pois diante das constantes violências que as mulheres sofrem de seus namorados e maridos, o discurso que é mostrado no filme é de que as mulheres sabem de antemão dos perigos de vida vindas de seus parceiros, mas que elas escolhem vivê-los. Nesta cena, perpassa ainda a idéia de que as mulheres tem o poder de transformar o homem em uma pessoa menos violenta, mais amorosa e menos sofrida. A protagonista acredita nas máscaras e acredita que Edward sustenta uma imagem de mal, quando na verdade ele é bom.

O que eu acho curioso é que as jovens suspiram muito mais pelas qualidades comportamentais do vampiro do que pela sua beleza, pois o que cativa, segundo elas, é a forma de ele tratar a protagonista.  Ele tem 109 anos ou seja é um homem velho, de hábitos "antigos" e que as pessoas associam equivocadamente ao romantismo. Ele é cortês, do tipo que abre a porta do carro, busca e deixa a namorada em casa, apresenta-se "oficialmente" ao pai, aparece seriamente vestido de terno gravata na formatura e aguarda a namorada aprontar-se enquanto fica na sala com o pai conversando, é educado, não altera a voz, enfim, é uma imagem que parece estar muito longe dos jovens reais não por conta do romantismo, mas porque se perdeu a noção de respeito ao outro, de amar no sentido mais amplo da palavra e o mais complicado vinculando tais gestos ao romantismo que para o senso comum remete a sentimento. Essa concepção torna mais ainda difícil para os rapazes que vê o sentimento como um elemento feminino, aprofundando dessa forma o abismo dos gêneros, tornando as emoções um terreno movediço e estranho para os homens por conta e um constructo sociocultural que separa de forma  perversa e destruidora sentimentos humanos em sentimentos excludentes ao sexo: a emoção (mulher) e razão (homem).

Se pensarmos na forma de tratamento hoje entre homens e mulheres penso na possibilidade do filme trazer algum tipo de humanização, apesar das minhas restrições às questões de gênero. Vivemos em uma sociedade em que as mulheres são muito maltratadas, por conta de uma distorção acerca da liberdade pela qual as feministas da segunda onda lutaram. Mas em um país como o nosso, em uma sociedade capitalista baseada na exploração, no lucro e individualismo, certos filmes como Crepúsculo parecem nos lembrar que há uma outra possibilidade de estar no mundo interagindo com o outro, sem os exageros, claro. Um pouco de amor em tempos de tanta violência, corrupção, inveja, maldades, maltratos parece não ser nada mal.

Será que fui mordida?

4 comentários:

  1. Foi abocanhada... de até vontade de assistir o filme

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  2. nossa "crepusculo" e um filme e tanto hein..
    fkou bastante detalhado a sua opiniao ..gstei parabens!!!

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  3. Pois é. Hoje um filme comercial deve reunir um conjunto de elementos fundamentais para ser vendido. Crepúsculo reúne uma história conhecida, faz parte do imaginário ocidental, e conta com um jogo de sedução fortíssimo.

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