quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

ENQUANTO ELA ESTÁ FORA (WHILE SHE WAS OUT), 2008


"In every dream home a heartache
And every step I take
Takes me further from heaven."
(Brian Ferry)

Direção: Susan Montford
Roteiro: Susan Montford
Elenco: Kim Basinger, Lukas Haas, Craig Sheffer, Luiz Chávez

O filme ENQUANTO ELA ESTÁ FORA (WHILE SHE WAS OUT) é de 2008, mas não cheguei a assistir na época em que passou nos cinemas (se é que chegou aqui em Salvador). Visitando uma loja de Departamento, encontrei um exemplar que logo me chamou a atenção pela capa e pelo título, sobretudo pelo fato da direção e roteiro serem assinados por uma mulher, o que para mim foi suficiente para adquiri-lo. Acertei. Nunca um filme de suspense e ação me agradou tanto ultimamente quanto esse. A capa traz uma mulher sentada no chão, exibindo uma aparência amedrontada e logo atrás dela, mais distante, a sombra de um homem. Uma imagem clichê, mas que quando associada ao titulo atiça a curiosidade: Ela está fora... mas de onde? Bem, em se tratando de um filme dirigido por uma mulher e como sou feminista, interpretei imediatamente fora como espaço da rua e dentro como espaço da casa, o que veio a ser confirmado durante a exibição.

O filme traz como protagonista Della (Kim Bassinger) uma mulher de classe média, suburbana, esposa infeliz cujo marido a trata com desprezo e violência. É também mãe de um casal de crianças gêmeas. No dia de Natal, Della sai à noite para comprar papel de presente. No estacionamento, vê um carro tomando duas vagas e resolve deixar um recado no pára-brisa. Ao retornar das compras, quatro rapazes a cercam, incomodados com a mensagem escrita. Um segurança do shopping tenta intervir, mas é logo assassinado. Na confusão, Della consegue entrar no carro e escapar, passando a ser perseguida pelos quatro bandidos. Ela adentra em uma área reservada a construção de casas feitas de madeira que fica próxima a uma mata. Della colide o carro contra um tronco, mas escapa do lugar, e como faz curso de mecânica, levou apenas uma caixinha de ferramentas com a qual ela consegue se defender dos agressores.

Já dentro da mata, desesperada e com a idéia fixa de reencontrar os filhos, a personagem mata todos os bandidos, um por um. O primeiro morre com o pescoço quebrado durante a perseguição. O segundo é atingido por uma chave de roda enfiada no nariz e que atravessa o crânio. O terceiro morre com uma grande chave de fenda enfiada no pescoço, traspassando a garganta. O terceiro tem uma morte mais demorada, já que, além de estar armado, é o líder da gang. Ele consegue se aproximar da personagem com a arma presa ao cós da calça na parte de trás, engatando uma conversa sobre os filhos. Diante da pressão psicológica, Della se apresenta e começa a partir daí um jogo de sedução, com o bandido tentando desestabilizá-la emocionalmente, aguçando a sua libido. Della percebe a estratégia e no decorrer da ação assume o controle, fingindo-se atraída. O bandido se aproxima e lhe toca o rosto. Della, por sua vez, corresponde às carícias do bandido e lhe beija sofregamente, passando a idéia de que o desejava intensamente. Ele tenta resistir e saca a arma, mas tem dificuldades em controlar seus desejos - quer dominá-la, vencê-la de todas as formas, subjugá-la sexualmente antes de matá-la. Ela tenta se desviar da arma e pede a ele para transarem. Buscando se aproveitar da situação, ele se descuida e com isso ela lança contra o rosto do bandido um sinalizador que estava em seu bolso (ela vestia um sobretudo). Com posse da arma, ela atira e o mata. Cambaleando, Della chega ao carro e tenta chegar em casa, mas com uma estranha e aparente tranquilidade, mais perto de um estado de choque. Próximo ao portão do condomínio, o carro enguiça. Ela desce e atravessa o portão cantarolando e ajeitando os enfeites natalinos nos jardins das casas. Entra em sua casa e é recebida com reclamações pelo marido, questionando o horário de chegada e o fato de estar sujando a casa de lama. Ela sobe as escadas e beija os filhos que já estão dormindo. O marido não percebe o seu estado e, sentado confortavelmente, pergunta de forma grosseira e autoritária como de costume, o que tinha comprado para ele. Ela responde: "nothing*" (*nada) e aponta a arma contra o rosto dele. O cano da arma aparece de frente para o espectador que vê a cena do lugar do marido. Vale a pena ressaltar um aspecto importante nessa cena sobre a linguagem fílmica e que nos ajuda a entender o que Laura Mulvey queria dizer sobre o conceito de “male gaze”. Mulvey defende a idéia de que o cinema, por ser um lugar historicamente ocupado por homens, construía as personagens a partir do olhar masculino, deixando transparecer para o espectador a sua visão de sujeito olhando para o outro, o objeto. A espectadora tinha pelo menos duas possibilidades de identificação: com a mulher do filme e, portanto, vendo-se como objeto de desejo do homem ou no lugar do homem, podendo sentir prazer com a forma de subjugar a mulher, causando um efeito complexo, pois mesmo que ela se identifique com o poder do homem presente no filme, ela não deixa de semioticamente se ver representada na personagem feminina, o que pode desencadear um efeito sadomasoquista em que o prazer se constrói na relação dor/prazer. No caso do filme, entendo que o olhar é feminista ("feminist gaze"), pois a câmera ao se posicionar no lugar da personagem masculina captura a imagem da mulher de baixo para cima, já que ele está sentado e ela em pé, construindo semioticamente uma personagem feminina empoderada.

Concordo com André Setaro, crítico de cinema renomado, professor do curso de Comunicação da UFBA, quando diz ser importante um mínimo de conhecimento da linguagem do cinema para melhor compreender um filme. Compartilho dessa idéia porque penso que a estrutura, a técnica, não estão dissociadas da ideologia, muitas vezes associada apenas ao conteúdo da mensagem. A ideologia está presente no texto como um todo e também no contexto. Assim,  conhecer os efeitos provocados pela posição e movimento da câmera é fundamental para termos uma dimensão da atitude política de quem dirige o filme, pois cada movimento de câmera tem um propósito e um efeito a provocar no espectador sobre o que se está querendo dizer com o tema proposto. Aliás, o cinema possui várias formas de dizer que não apenas através dos diálogos escritos no roteiro, mas  também: 1) como eles são encenados pelos atores, 2) através da montagem, 3) do cenário, 4) da sonoplastia, 5) das cores, 6) do ritmo das mudanças de cenas e tomadas dos planos e ângulos, a7) través da escolha do tipo, tamanho e cor da fonte, 8) seleção do elenco, etc. Portanto, analisar um filme exige um conhecimento do dispositivo teórico de análise e das técnicas específicas do objeto artístico.

Sendo assim, é a partir do dispositivo de angulação que vemos no final do filme ENQUANTO ELA ESTÁ FORA uma outra mulher surgir, já que no início a personagem aparece acuada, com medo do marido, mas que no final, devido a situação pela qual passou, os perigos da vida fora do espaço da casa, acabaram por fortalecê-la a ponto de enfrentar o marido. Esse empoderamento é mostrado através da imagem da protagonista capturada  pela câmera com “ângulo baixo”, colocando a personagem em posição de superioridade e dominância, valorizando a imagem capturada, nesse caso a personagem principal feminina. É devido a um aspecto da linguagem cinematográfica que podemos chegar a conclusão de que o filme pode ser considerado feminista, pois a narrativa se desenvolve com a mudança de atitude da mulher: de submissa e subserviente a destemida e corajosa. É nesse sentido que dizemos que o filme possui um “feminist gaze”.

A vida da protagonista pode ser dividida em dois momentos no filme: antes e depois da agressão no shopping. Embora ela também seja agredida em casa pelo marido, a experiência que ela vive na rua a transforma radicalmente, pois não tem alguém para protegê-la. A necessidade de sobrevivência lança a personagem para uma posição de enfrentar e liquidar o perigo e essa consciência a deixa mais segura, pois precisa decidir sobre cada ação, ainda que no filme as mortes tenham sido mostradas não como um prazer para a personagem, como aparece nos filmes protagomizados por homens, mas como se aquela situação a levasse a cometer aqueles atos, o que pode significar que as mulheres precisam muitas vezes superar as limitações culturais de gênero impostos pela sociedade no exercício dos papéis para os quais foram educadas, para, através dessa ruptura, poderem sobreviver no espaço fora desse círculo. A personagem cresce, assume o controle da situação, de sua vida, ao mesmo tempo em que o marido diminui em seu poder sobre ela. As desafios do mundo, os perigos e obstáculos a serem superados no espaço público aparecem como necessários para a mulher se fortalecer, muito embora esse aspecto possa ser útil para as mulheres de classe média, suburbana, que tem uma vida limitada à casa e ao marido, mas não podemos dizer que essa situação resolva a questão da dependência da mulher ao homem, haja vista os vários casos que conhecemos em que as mulheres atuam profissionalmente, são bem-sucedidas, mas se deixam controlar pelos maridos ou por um outro a quem ela delega poderes de protegê-la.

Em uma das cenas, um dos bandidos aprendeu a temê-la, pois achava que ela tinha se tornado má. Segundo ele, uma pessoa quando degusta a maldade adquire força, poder. Talvez, em contraposição a benevolência de esposa e mãe dedicada e de sua vida doméstica de concessões, ser "má" deu a protagonista um sentido para viver, para se colocar na disputa pela sua própria vida, antes controlada pelo marido.

O filme é simplesmente fantástico, embora com alguns clichês, mas que em nenhum momento tira o seu valor ou compromete o propósito. Em geral, filmes desse gênero colocam a mulher em situação de perigo, mas a proteção de um herói que deverá resgatá-la. Esse filme não traz herói algum. É a mulher que tem que se defender para sobreviver.

Vale a pena assistir!

No final do filme, uma música de Bryan Ferry, muito oportuna, é tocada. Chama-se Em cada casa dos sonhos uma tristeza (In Every Dream Home a Heartache). Segue a letra com a tradução:


IN EVERY DREAM HOME A HEARTACHE

In every dream home a heartache
And every step I take
Takes me further from heaven
Is there a heaven?
I`d like to think so
Standards of living
They´re rising daily
But home oh sweet home
It´s only a saying
From bell push to faucet
In smart town apartment
The cottage is pretty
The main house a palace
Penthouse perfection
But what goes on
What to do there
Better pray there
Open plan living
Bungalow ranch style
All of its comforts
Seem so essential
I bought you mail order
My plain wrapper baby
Your skin is like vinyl
The perfect companion
You float in my new pool
De luxe and delightful
Inflatable doll
My role is to serve you
Disposable darling
Can´t throw you away now
Immortal and life size
My breath is inside you
I´ll dress you up daily
And keep you till death sighs
Inflatable doll
Lover ungrateful
I blew up your body
But you blew my mind
Oh Those Heartaches
Dreamhome Heartaches

TRADUÇÂO

EM CADA CASA DOS SONHOS UMA TRISTEZA

Em cada casa dos sonhos uma tristeza
E cada passo que dou
Me leva mais longe do paraíso
Existe um paraíso?
Eu gostaria de pensar que sim
Padrões de vida
Aumentam diariamente
Mas lar, doce lar
É só uma frase
Da campainha à torneira
Em apartamentos da cidade
O chalé é bonito
A casa principal, um palácio
A cobertura é perfeita
Mas o que acontece lá?
O que se faz lá?
É melhor rezar lá
Viver em lofts
No estilo bangalô
Todos os seus confortos
Parecem tão essenciais
Eu comprei pelo correio
A minha querida em papel de embrulho
A sua pele é como vinil
A perfeita companheira
Você flutua em minha nova piscina
De luxo e delícias
Boneca inflável
Meu prazer é servi-la
Querida descartável
Não posso jogá-la fora agora
Imortal e em tamanho natural
Minha respiração está dentro de você
Eu a visto diariamente
Vou mantê-la até a morte chegar
Boneca inflável
Amante ingrata
Eu explodi o seu corpo
Mas você explodiu a minha mente
Oh, querida
A casa dos sonhos é triste

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