terça-feira, 14 de setembro de 2010

A ESTRANHA PASSAGEIRA (NOW, VOYAGER, 1942)

Título original:Now, Voyager

Gênero:Drama
Ano de lançamento:1942
Estúdio:Warner Bros.
Distribuidora:Warner Bros.
Direção: Irving Rapper
Roteiro:Casey Robinson, baseado em livro de Olive Higgins Prouty
Produção:Hal B. Wallis
Música:Max Steiner
Fotografia:Sol Polito
Direção de arte:Robert M. Haas
Figurino:Orry-Kelly
Edição:Warren Low

Quando assisti ao filme A Estranha Passageira percebi que havia alguma coisa nele que não podia ser atribuída a um olhar que não fosse do lugar da experiência de uma mulher. De fato, o filme foi baseado no romance de Olive Higgins Prouty uma romancista norte-americana que escreveu durante o período da primeira e a segunda guerra mundial e que tratava em seus escritos da importância da mulher na sociedade. O filme A Estranha Passageira não poderia ter melhor atriz para protagonizá-lo, já que Betty Davis ficou famosa por encarnar papéis de mulheres fortes e independentes como Julie Marsden em Jezebel, e Margo Channing em A Malvada. Não é diferente em A Estranha Passageira no qual vive o papel de Charlotte, a única filha da Sra. Henry Windle Vale (Gladys Cooper) que ficou responsável pelos seus cuidados. O extremo controle sobre a filha impediu Charlotte de viver a liberdade ilustrada no filme com as experiências próprias da juventude, como os namoros. O cerceamento levou a personagem na maturidade a uma crise nervosa que, por orientação psiquiátrica, foi tratada em uma clínica de repouso. Ao sair, fez uma viagem ao Brasil (Rio de Janeiro) onde, durante a viagem, conheceu um homem por quem se apaixonou e foi correspondida, dando origem a um caso. Por ser casado, embora um casamento problemático, com esposa doente e filha rebelde, os encontros deixaram de acontecer com a chegada de ambos nos Estados Unidos. Charlotte volta para casa  e, embora o relacionamento com a mãe não tenha melhorado, aprendeu a se poupar e a controlar as suas emoções. Com a morte da mãe, em um momento de discussão entre as duas, Charlotte se sente culpada e retorna à clinica para pedir ajuda ao psquiatra, mas encontra uma adolescente também com problemas, chamada Tina, e se identifica com a menina, passando a cuidar dela. Mais tarde descobre que a menina é filha do homem com quem teve um caso no Brasil e resolve "adotá-la". Adiante, quando Charlotte reencontra em sua casa o amante, ela já é herdeira da fortuna da família, e propõe a ele que lhe permita continuar a cuidar da filha. Ele resiste por achar abusivo e, cheio de dignidade, nega-lhe de início, mas ela faz o pedido parecer-lhe mais um contentamento do que um fardo, já que estaria cuidando da filha do homem que ama. Diante do interdito social que os impedia de ficarem juntos e diante da possibilidade do filme terminar com uma mulher sozinha, solteira e rica, a saída foi a maternidade, ainda que de empréstimo. O espectador dos anos 40 (e muito menos os de hoje) ainda não estava preparado para um final tão positivo para as mulheres solteiras, sexualmente livres, por isso canaliza a sexualidade feminina para o exercício da maternidade.

O filme é de uma violência psicológica muito forte, pois expõe de forma contundente as tensões existentes no espaço da familiar, considerado "doce lar", para mostrar uma relação dificílima de mãe e filha, com diálogos duríssimos entre ambas. A mãe passa a representar a autoridade patriarcal e acaba submetendo a filha, apesar de ter outros filhos (homens), ao seus propósitos, e faz com que ela viva em função do papel exclusivo e único de filha. Em nenhum momento os filhos aparecem no filme, apenas são citados, deixando claro que a filha, a mulher, dentro do modelo de sociedade patriarcal não tem voz, nem vontade própria. A filha que vive a sua sexualidade reprimida e, também, é exilada de outros contatos mais amplos de afetividade, vai aos poucos ficando ressequida e amarga. O curioso é que no início do filme mãe e filha estão em uma embarcação e, em um dado momento, a filha é flagrada com um marinheiro dentro de um carro entre beijos e abraços (hoje fala-se em amasso). Na maturidade, quando ela se relaciona com um homem, ela também está dentro de um navio e se apaixonando por um passageiro. O filme mostra duas situações semelhantes em contextos diferentes em um mesmo modelo de sociedade. Assim, sugere os mecanismos de controle da sociedade sobre a sexualidade da mulher, tendo a família (a mãe) como o espaço de controle da sexualidade feminina. A ausência física da mãe lhe possibilita maior liberdade, porém o fato de ser uma mulher madura e sozinha gera sentidos que faz com que um homem da embarcação a apresente a um estranho estranho. Quando jovem ela é controlada por gestos repressores da mãe, que tem presença forte em sua vida, impedindo-a de ser livre e independente, já na maturidade, quando a presença da mãe já não tem tanta força, e ela resolve viajar sem a companhia da mãe, ela pôde realizar os seus desejos.  No entanto, essa liberdade sexual só poderia ser vivida em um outro país, o Brasil, com todo o exotismo a ele atribuído, em uma terra estranha, mítica, onde poderia romper com as convenções. Tanto é que, ao voltar, o caso termina e  o papel de amante vai cedendo lugar para a maternidade. A protagonista vai ficando assexuada.

Ainda assim, é um filme que traz um recorte histórico, de classe e gênero que mostra com bastante lucidez os conflitos vividos por mulheres de classe alta em uma sociedade patriarcal e coloca a questão de gênero dentro de uma discussão profícua, pois ao trazer relações de poder entre mãe-filha, desloca o eixo sexual binário na oposição macho/dominador e fêmea/dominada, para problematizar as relações de poder nos papéis sociais. O filme, neste aspecto, é exemplar para esta discussão.

Breve biografia: Olive Higgins Prouty (January 10, 1882-March 24, 1974) was an American novelist, most active in the period between the First and Second World Wars. In this interval between women's suffrage and women's liberation, when few openly questioned the notion that a woman's fulfillment is to be found in a subordinate role, Prouty insisted on the importance, for women as well as for men, of independent judgment, freedom from illusion, and full personal responsibility for one's actions. Her stories depict the struggles of American women to achieve a life of integrity despite the stifling triviality of the social roles allotted to them. Of her ten novels, the best known are Stella Dallas (1923) and Now, Voyager (1941). Disponível em: http://www25.uua.org/uuhs/duub/articles/olivehigginsprouty.html

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